sexta-feira, 15 de maio de 2009

A escola tem um futuro?

“A Escola tem futuro?” é o título de uma publicação de Rui Canário, professor da Universidade de Lisboa e publicado no Brasil pela Artmed. Dialogando com este título, acho que temos um tema bem interessante para o momento político que vivemos. Sabe aqueles chavões “o futuro está na educação”; “pense no futuro, seja amigo da escola”? A todo instante somos bombardeados pela opinião de que a saída para os problemas sociais, sejam eles a miséria, a violência, o desemprego, estariam numa educação de qualidade. Globalizado o mundo, também globalizou-se o censo comum de que as diferenças sociais eram mais evidentes nas sociedades em que a educação não é tratada como prioridade. Para isto, fala-se o tempo todo em novas tecnologias, transformações do mundo do trabalho, da restruturação do sistema de produção, enfim, o diagnóstico sempre aponta para a constatação de que a escola não estaria em sintonia com o advento do novo século.

O que precisamos saber hoje é se esta escola que historicamente concebemos e reivindicamos tem futuro num mundo com constantes transformações. Só para rememorar os desavisados, as consignas da escola democrática baseada nos valores da educação pública, gratuita e para todos nada mais são do que bandeiras levantas pelos jacobinos durante a revolução francesa no século XVIII e, portanto, não são nada inovadoras quando apresentadas mais de dois séculos depois do advento do iluminismo. E também não podemos cair no discurso fácil de que tudo pode mudar a partir da educação, até porque diversos autores já provaram que a escola, embora permeada de contradições, serve muito mais para conservar valores de uma determinada cultura, do que para “revolucionar”.

Além de conservar os valores do capitalismo, esta escola não é a mesma para todo mundo. Lógico que enquanto existirem classes sociais, e estas estiverem em confronto entre si, o trabalho será sempre o fator histórico que moldará a educação de toda a humanidade. Por conta disto, existe uma escola que pensa e outra que faz, ou melhor, uma escola para os governantes e uma escola para os governados, uma educação para os filhos da burguesia e outra para os filhos dos trabalhadores – essa é a maior contradição da escola moderna, ela não é única, ela também é dividida por classes sociais, ou seja, na sua essência ela carrega consigo uma dualidade.

Então não nos basta reivindicarmos uma escola pública, gratuita e democrática, pois se lutamos pelo fim da exploração do homem pelo homem, a educação burguesa precisa morrer junto com o sistema que a preserva. Sendo assim, precisamos afirmar que a escola do capitalismo não tem futuro.


A escola do futuro

Não basta somente identificarmos as limitações da nossa educação, mas é preciso reivindicar mudanças que apontem para a educação do novo homem, liberto e dono do seu próprio destino. Para isto, devemos construir a escola do futuro, aquela que substituirá a atual, e que edificará uma nova sociedade.

Essa disputa não deve esperar a tomada do poder, mas precisa se dar no embate interno que travamos contra o capital. Portanto, precisamos partir da denúncia da dualidade da escola. Por que existe uma escola pra ricos e outra para os filhos dos trabalhadores? Por que ainda permanece uma visão permissiva da escola, que além de admitir estas diferenças também às legitimam? Precisamos reivindicar a Escola Unitária que diferencia-se de várias outras propostas pelo princípio de que seu ponto de partida é a escola que está aí, aquela produto do processo histórico do desenvolvimento da sociedade capitalista, a ser superada dialeticamente na “escola unitária”. Essa forma de conceber a construção de uma nova escola, que não se baseia num “deus ex machina”, proporciona-nos um estímulo “extra” para refletirmos sobre a organização escolar com a qual nos deparamos cotidianamente, desejando transformá-la na escola do futuro. É importante refletirmos sobre isto num momento onde o Estado se amplia e a escola se torna, ao mesmo tempo, o centro difusor do conteúdo ético do “Estado” e o eixo de organização cultural da classe trabalhadora. Mas para isto, é preciso acirrarmos a sua disputa.

O pedagogo italiano Mario Manacorda afirma em seu livro “Marx e a educação moderna” que, diferente do que muitos afirmam, tanto Marx quanto Engels desenvolveram muitas ideias que já projetavam a escola do futuro. Segundo Manacorda, em “A crítica do programa de Gotha”, Marx já apresentava a opinião de que além de popular, nos marcos do capitalismo, o ensino deveria ser obrigatório e gratuito, como afirma o programa do partido operário alemão (objeto da crítica de Marx), mas também estas escolas devem ser técnicas (teóricas e práticas). Além disto, ele aponta como reacionária a proibição [geral] do trabalho das crianças, porque “o vínculo precoce entre o trabalho produtivo e o ensino é um dos mais potentes meios de transformação da sociedade atual.”

Portanto chegamos a uma questão crucial para os socialistas - precisamos reivindicar a união de ensino e trabalho produtivo para as crianças, que não deve ser encarado como exploração infantil, bem pelo contrário, mas como humanização precoce e universalização dos saberes (tecnológicos, corporais e intelectuais).

Eis que assim acende a luz das ideias para a escola brasileira. É preciso agora, mais do que nunca, reinventarmos a educação de massa. Se queremos debater o sistema nacional de educação, precisamos enfrentar o debate acerca do papel da escola pública. Se partimos do pressuposto que, guardada as exceções, este modelo fracassou e tornou-se cada vez mais excludente, precisamos propor uma nova organização do ensino brasileiro.

Levando em conta o conceito de Escola Unitária, e além disto, de que este deve associar o ensino teórico, prático e corporal, devemos:

1.Tornar obrigatório o ensino escolar básico dos zero as vinte (0 – 20) anos para todos. Para isto, torna-se dever do Estado garantir a escola pública para toda a população nesta faixa etária.
2.Dividir a educação básica em 4 estágios, ou seja: educação infantil (zero aos cinco anos); educação fundamental I (seis aos dez anos); educação fundamental II (dos onze aos quinze anos) e educação média (dos dezesseis aos vinte anos);

Para a educação infantil deve-se garantir à criança o direito a alimentação, ao ato de brincar, a criatividade e as habilidades artísticas (musicais, teatrais, etc) e a consciência corporal;

Para o primeiro estágio da educação fundamental deve-se garantir a criança o letramento, a alfabetização, a educação física, matemática e artística, associada a introdução aos estudos técnicos, como as técnicas agrícolas e artesanais;

Já no segundo estágio da educação fundamental, além dos estudos sociais, linguísticos, matemáticos históricos, científicos e corporais, deve-se introduzir no currículo, guardada as características econômicas e sociais ao qual esta escola esteja inserida, a introdução das disciplinas tecnológicas gerais (agrícolas, mecânicas e tecnológica, além de técnicas de administração, econômicas e financeiras);

No ensino médio, é preciso atribuir ao jovem a responsabilidade pela construção do seu futuro no mundo do trabalho. Para isto, além dos currículos obrigatórios comuns a todos os anos do ensino médio, é preciso garantir que um terço (1/3) do currículo seja escolhido pelo próprio estudante. Assim ele poderá direcionar a sua formação seja o nível superior tecnológico ou para a acadêmia das ciências.

Embora este seja apenas um esboço, portanto pode estar permeado de falhas e contradições, é preciso que o leitor pelo menos extraia o fundamental – a escola precisa mudar, e isso só ocorrerá se no predispormos a lutar por isto.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Vestibular e o elitismo psicocultural

As últimas décadas cristalizaram no Brasil o caráter hegemônico da visão privatista na educação, tendo como resultado um sistema educacional diferenciado/dual, o que gerou a constituição de um número cada vez mais restrito de centros de excelência para elites intelectuais, além de uma forte marca da formação para o atendimento das demandas/exigências do mercado.

Para este modelo, o objetivo final será sempre a seleção dos melhores indivíduos, baseada em critérios "naturais" de aptidão e de inteligência, o que configura o chamado elitismo psicocultural - que no Brasil tem um conceito comumente conhecido como seletividade meritocrática. A visão da meritocracia (do latim mereo, merecer, obter) consolida no nosso sistema educacional uma concepção com base no merecimento, com uma forte predominância de valores associados à educação corporativa e às competências.

Mas quais são os mecanismos da aferição destas competências? A palavra meritocracia provavelmente apareceu pela primeira vez no livro "Rise of the Meritocracy", de Michael Young (1958), que carregava nela um conteúdo negativo, pois a história tratava de uma sociedade futura na qual a posição social de uma pessoa era determinada pelo QI e esforço. Young utilizou a palavra mérito num sentido pejorativo, diferente do comum ou daquele usado pelos defensores da meritocracia, que, para estes, mérito significa aproximadamente habilidade, inteligência e esforço.

Uma crítica comumente feita à meritocracia é a ausência de uma medida específica desses valores e a arbitrariedade de sua escolha. Ou seja, o mérito sempre será aferido a partir da visão de quem o avalia. No Brasil, o modelo meritocrático tem sido utilizado como mecanismo de acesso a maiores níveis sociais, para ascendência social. Concursos públicos, obtenção de promoções de níveis e planos de carreiras, contratos de prestação de serviços e, inclusive, o mecanismo de seleção para o acesso ao ensino superior.

Por décadas o vestibular brasileiro esteve permeado pelo conceito da meritocracia e inclusive esta discussão teve grande força em meados da década de 70 do último século por conta do chamado conceito de excedente. "Eu fiquei de excedente no vestibular, então não dá pra saber se vou ser chamada e, enquanto isso, vou fazendo cursinho! Final do ano tem mais vestibulares...". Essa era uma declaração comum entre os vestibulandos que não obtinham classificação dentro da oferta de vagas. Ou seja, para toda a carreira universitária havia um grau de vagas em oferta e outro de vagas excedentes.

O que chamava a atenção era que a definição de excedente no vestibular queria dizer na verdade que o concorrente obteve mérito para acessar à universidade, mas esta não tinha vagas suficientes para efetivá-lo. Isso, em determinado momento, gerou contestações e reivindicações que obrigavam juridicamente diversas instituições a garantirem a vaga para estudantes que não a haviam obtido, mas meritocratimente estavam aprovados.

Lógico que o sistema tratou de resolver este problema retirando o conceito de excedente para a constituição das linhas de corte e das suplências, o que resultou na ampliação do conceito de reprovação e, assim, retirando a essência do conceito meritocrático. Ou seja, o mérito passou a ser associado à classificação e não à média ou conceito, o que resultou num mecanismo muito mais concorrencial, onde obtém mais méritos quem conquista maiores notas e estas deixam de ter um valor universal para serem um sistema de medição das maiores para as menores classificações.

O que justifica um estudante com média 7,8 ser melhor do que um com média 7,4? O que faz com que estes quatro décimos de diferença possam justificar uma diferença de méritos entre o maior e o menor? Lógico que aqui é usada uma ciência exata para a constituição de um valor subjetivo, que é a avaliação de méritos.

É certo que o mecanismo concorrencial acabou por desconfigurar os reais objetivos de um sistema de avaliação, que passou a ser de fato um sistema de ranquiamento com um forte viés de exclusão. A substituição da avaliação pela exclusão acabou por distorcer as provas de aptidão e de inclusão e o resultado disto tudo foi a mercantilização de vagas no ensino superior.

Esta discussão torna-se fundamental no momento em que o Brasil discute um novo modelo de acesso às universidades públicas federais. Pelo novo sistema apresentado pelo Ministério da Educação, o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) tornar-se-ia o novo mecanismo de acesso a universidade em substituição ao tradicional vestibular. O problema central aqui é que novamente um sistema de avaliação, que num primeiro momento deveria servir para garantir a qualidade do ensino médio, será totalmente desfigurado para ter o objetivo do acesso aos grandes centros de excelência do ensino superior.

Portanto, neste debate precisamos de maior atenção, fundamentalmente porque tanto o modelo meritocrático do atual vestibular quanto os objetivos do ENEM precisam ser melhor identificados para que a distorção já provocada pela meritocracia não aprofunde mais ainda a barreira para aqueles que buscam obter o acesso ao ensino superior furando o bloqueio instituído por um mecanismo perverso e subjetivo que é o vestibular.

As avaliações em curso no Brasil - SAEB, ENEM, ENADE - ainda não conseguem considerar as implicações sociais e educacionais do rendimento escolar, pois baseados em aplicação de testes para medição de rendimento escolar, além da classificação e ranqueamento de escolas e universidades, o modelo ainda situa-se nos marcos da meritocracia. Não analisar as condições das escolas, a formação dos professores e todos os mecanismos que compõem a realidade da educação brasileira acaba por deformar o resultado final. Punir com a exclusão da universidade pública aqueles estudantes que, por ausência do próprio Estado, acabam por ter uma formação menos qualificada acaba por resultar numa dupla exclusão, o que torna ainda mais maléfico o modelo de avaliação proposto pelo MEC.

Sendo assim, no atual momento, não nos cabe somente denunciar, mas também propor um modelo mais avançado, que dê a avaliação do ensino médio um caráter de intervenção eficiente para superar os problemas da qualidade e sucesso escolar e também que o mecanismo meritocrático seja substituido por uma avaliação assistida e promotora da igualdade de oportunidade.

Um primeiro passo será a reorganização da avaliação do Ensino Médio. O ENEM deve perder o sentido de ranqueamento, tanto das instituições avaliadas quanto do aluno. Outra questão importante deve ser a inclusão de novos parâmetros na formação dos conceitos de avaliação no exame do ensino médio. A escola já aplica um sistema de avaliação próprio que é preciso ser considerado, porque este não ranqueia os estudantes, mas sim os promove para uma nova etapa da aprendizagem. Portanto, seria fundamental que o ENEM também levasse em conta a avaliação seriada e também incluisse um sistema de auto-avaliação, tanto do aluno, quanto da instituição e dos professores.

Então teríamos a uma média harmônica constituída pela avaliação seriada do aluno, mais a aplicação do ENEM ao final de cada ano letivo, mais a auto-avaliação. Somente depois da reconstituição da avaliação do ensino médio poderíamos pensar os mecanismos de aproveitamento deste para que substitua o vestibular. Não basta dizer que acabamos com o atual sistema de acesso ao ensino superior quando o substituímos por um outro mecanismo semelhante. O fim do vestibular deve estar associado a novos parâmetros de garantia da qualidade do ensino médio e esta é uma responsabilidade do Estado, que deve contar com a colaboração do sistema federal de ensino superior - que precisa estar comprometido com a formação e requalificação de professores, currículos e estruturas escolares. Enquanto isto não ocorrer, não adianta de nada comemorarmos, porque não estamos vendo com a atual proposta do MEC o tão sonhado fim do vestibular.