sexta-feira, 15 de maio de 2009

A escola tem um futuro?

“A Escola tem futuro?” é o título de uma publicação de Rui Canário, professor da Universidade de Lisboa e publicado no Brasil pela Artmed. Dialogando com este título, acho que temos um tema bem interessante para o momento político que vivemos. Sabe aqueles chavões “o futuro está na educação”; “pense no futuro, seja amigo da escola”? A todo instante somos bombardeados pela opinião de que a saída para os problemas sociais, sejam eles a miséria, a violência, o desemprego, estariam numa educação de qualidade. Globalizado o mundo, também globalizou-se o censo comum de que as diferenças sociais eram mais evidentes nas sociedades em que a educação não é tratada como prioridade. Para isto, fala-se o tempo todo em novas tecnologias, transformações do mundo do trabalho, da restruturação do sistema de produção, enfim, o diagnóstico sempre aponta para a constatação de que a escola não estaria em sintonia com o advento do novo século.

O que precisamos saber hoje é se esta escola que historicamente concebemos e reivindicamos tem futuro num mundo com constantes transformações. Só para rememorar os desavisados, as consignas da escola democrática baseada nos valores da educação pública, gratuita e para todos nada mais são do que bandeiras levantas pelos jacobinos durante a revolução francesa no século XVIII e, portanto, não são nada inovadoras quando apresentadas mais de dois séculos depois do advento do iluminismo. E também não podemos cair no discurso fácil de que tudo pode mudar a partir da educação, até porque diversos autores já provaram que a escola, embora permeada de contradições, serve muito mais para conservar valores de uma determinada cultura, do que para “revolucionar”.

Além de conservar os valores do capitalismo, esta escola não é a mesma para todo mundo. Lógico que enquanto existirem classes sociais, e estas estiverem em confronto entre si, o trabalho será sempre o fator histórico que moldará a educação de toda a humanidade. Por conta disto, existe uma escola que pensa e outra que faz, ou melhor, uma escola para os governantes e uma escola para os governados, uma educação para os filhos da burguesia e outra para os filhos dos trabalhadores – essa é a maior contradição da escola moderna, ela não é única, ela também é dividida por classes sociais, ou seja, na sua essência ela carrega consigo uma dualidade.

Então não nos basta reivindicarmos uma escola pública, gratuita e democrática, pois se lutamos pelo fim da exploração do homem pelo homem, a educação burguesa precisa morrer junto com o sistema que a preserva. Sendo assim, precisamos afirmar que a escola do capitalismo não tem futuro.


A escola do futuro

Não basta somente identificarmos as limitações da nossa educação, mas é preciso reivindicar mudanças que apontem para a educação do novo homem, liberto e dono do seu próprio destino. Para isto, devemos construir a escola do futuro, aquela que substituirá a atual, e que edificará uma nova sociedade.

Essa disputa não deve esperar a tomada do poder, mas precisa se dar no embate interno que travamos contra o capital. Portanto, precisamos partir da denúncia da dualidade da escola. Por que existe uma escola pra ricos e outra para os filhos dos trabalhadores? Por que ainda permanece uma visão permissiva da escola, que além de admitir estas diferenças também às legitimam? Precisamos reivindicar a Escola Unitária que diferencia-se de várias outras propostas pelo princípio de que seu ponto de partida é a escola que está aí, aquela produto do processo histórico do desenvolvimento da sociedade capitalista, a ser superada dialeticamente na “escola unitária”. Essa forma de conceber a construção de uma nova escola, que não se baseia num “deus ex machina”, proporciona-nos um estímulo “extra” para refletirmos sobre a organização escolar com a qual nos deparamos cotidianamente, desejando transformá-la na escola do futuro. É importante refletirmos sobre isto num momento onde o Estado se amplia e a escola se torna, ao mesmo tempo, o centro difusor do conteúdo ético do “Estado” e o eixo de organização cultural da classe trabalhadora. Mas para isto, é preciso acirrarmos a sua disputa.

O pedagogo italiano Mario Manacorda afirma em seu livro “Marx e a educação moderna” que, diferente do que muitos afirmam, tanto Marx quanto Engels desenvolveram muitas ideias que já projetavam a escola do futuro. Segundo Manacorda, em “A crítica do programa de Gotha”, Marx já apresentava a opinião de que além de popular, nos marcos do capitalismo, o ensino deveria ser obrigatório e gratuito, como afirma o programa do partido operário alemão (objeto da crítica de Marx), mas também estas escolas devem ser técnicas (teóricas e práticas). Além disto, ele aponta como reacionária a proibição [geral] do trabalho das crianças, porque “o vínculo precoce entre o trabalho produtivo e o ensino é um dos mais potentes meios de transformação da sociedade atual.”

Portanto chegamos a uma questão crucial para os socialistas - precisamos reivindicar a união de ensino e trabalho produtivo para as crianças, que não deve ser encarado como exploração infantil, bem pelo contrário, mas como humanização precoce e universalização dos saberes (tecnológicos, corporais e intelectuais).

Eis que assim acende a luz das ideias para a escola brasileira. É preciso agora, mais do que nunca, reinventarmos a educação de massa. Se queremos debater o sistema nacional de educação, precisamos enfrentar o debate acerca do papel da escola pública. Se partimos do pressuposto que, guardada as exceções, este modelo fracassou e tornou-se cada vez mais excludente, precisamos propor uma nova organização do ensino brasileiro.

Levando em conta o conceito de Escola Unitária, e além disto, de que este deve associar o ensino teórico, prático e corporal, devemos:

1.Tornar obrigatório o ensino escolar básico dos zero as vinte (0 – 20) anos para todos. Para isto, torna-se dever do Estado garantir a escola pública para toda a população nesta faixa etária.
2.Dividir a educação básica em 4 estágios, ou seja: educação infantil (zero aos cinco anos); educação fundamental I (seis aos dez anos); educação fundamental II (dos onze aos quinze anos) e educação média (dos dezesseis aos vinte anos);

Para a educação infantil deve-se garantir à criança o direito a alimentação, ao ato de brincar, a criatividade e as habilidades artísticas (musicais, teatrais, etc) e a consciência corporal;

Para o primeiro estágio da educação fundamental deve-se garantir a criança o letramento, a alfabetização, a educação física, matemática e artística, associada a introdução aos estudos técnicos, como as técnicas agrícolas e artesanais;

Já no segundo estágio da educação fundamental, além dos estudos sociais, linguísticos, matemáticos históricos, científicos e corporais, deve-se introduzir no currículo, guardada as características econômicas e sociais ao qual esta escola esteja inserida, a introdução das disciplinas tecnológicas gerais (agrícolas, mecânicas e tecnológica, além de técnicas de administração, econômicas e financeiras);

No ensino médio, é preciso atribuir ao jovem a responsabilidade pela construção do seu futuro no mundo do trabalho. Para isto, além dos currículos obrigatórios comuns a todos os anos do ensino médio, é preciso garantir que um terço (1/3) do currículo seja escolhido pelo próprio estudante. Assim ele poderá direcionar a sua formação seja o nível superior tecnológico ou para a acadêmia das ciências.

Embora este seja apenas um esboço, portanto pode estar permeado de falhas e contradições, é preciso que o leitor pelo menos extraia o fundamental – a escola precisa mudar, e isso só ocorrerá se no predispormos a lutar por isto.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Vestibular e o elitismo psicocultural

As últimas décadas cristalizaram no Brasil o caráter hegemônico da visão privatista na educação, tendo como resultado um sistema educacional diferenciado/dual, o que gerou a constituição de um número cada vez mais restrito de centros de excelência para elites intelectuais, além de uma forte marca da formação para o atendimento das demandas/exigências do mercado.

Para este modelo, o objetivo final será sempre a seleção dos melhores indivíduos, baseada em critérios "naturais" de aptidão e de inteligência, o que configura o chamado elitismo psicocultural - que no Brasil tem um conceito comumente conhecido como seletividade meritocrática. A visão da meritocracia (do latim mereo, merecer, obter) consolida no nosso sistema educacional uma concepção com base no merecimento, com uma forte predominância de valores associados à educação corporativa e às competências.

Mas quais são os mecanismos da aferição destas competências? A palavra meritocracia provavelmente apareceu pela primeira vez no livro "Rise of the Meritocracy", de Michael Young (1958), que carregava nela um conteúdo negativo, pois a história tratava de uma sociedade futura na qual a posição social de uma pessoa era determinada pelo QI e esforço. Young utilizou a palavra mérito num sentido pejorativo, diferente do comum ou daquele usado pelos defensores da meritocracia, que, para estes, mérito significa aproximadamente habilidade, inteligência e esforço.

Uma crítica comumente feita à meritocracia é a ausência de uma medida específica desses valores e a arbitrariedade de sua escolha. Ou seja, o mérito sempre será aferido a partir da visão de quem o avalia. No Brasil, o modelo meritocrático tem sido utilizado como mecanismo de acesso a maiores níveis sociais, para ascendência social. Concursos públicos, obtenção de promoções de níveis e planos de carreiras, contratos de prestação de serviços e, inclusive, o mecanismo de seleção para o acesso ao ensino superior.

Por décadas o vestibular brasileiro esteve permeado pelo conceito da meritocracia e inclusive esta discussão teve grande força em meados da década de 70 do último século por conta do chamado conceito de excedente. "Eu fiquei de excedente no vestibular, então não dá pra saber se vou ser chamada e, enquanto isso, vou fazendo cursinho! Final do ano tem mais vestibulares...". Essa era uma declaração comum entre os vestibulandos que não obtinham classificação dentro da oferta de vagas. Ou seja, para toda a carreira universitária havia um grau de vagas em oferta e outro de vagas excedentes.

O que chamava a atenção era que a definição de excedente no vestibular queria dizer na verdade que o concorrente obteve mérito para acessar à universidade, mas esta não tinha vagas suficientes para efetivá-lo. Isso, em determinado momento, gerou contestações e reivindicações que obrigavam juridicamente diversas instituições a garantirem a vaga para estudantes que não a haviam obtido, mas meritocratimente estavam aprovados.

Lógico que o sistema tratou de resolver este problema retirando o conceito de excedente para a constituição das linhas de corte e das suplências, o que resultou na ampliação do conceito de reprovação e, assim, retirando a essência do conceito meritocrático. Ou seja, o mérito passou a ser associado à classificação e não à média ou conceito, o que resultou num mecanismo muito mais concorrencial, onde obtém mais méritos quem conquista maiores notas e estas deixam de ter um valor universal para serem um sistema de medição das maiores para as menores classificações.

O que justifica um estudante com média 7,8 ser melhor do que um com média 7,4? O que faz com que estes quatro décimos de diferença possam justificar uma diferença de méritos entre o maior e o menor? Lógico que aqui é usada uma ciência exata para a constituição de um valor subjetivo, que é a avaliação de méritos.

É certo que o mecanismo concorrencial acabou por desconfigurar os reais objetivos de um sistema de avaliação, que passou a ser de fato um sistema de ranquiamento com um forte viés de exclusão. A substituição da avaliação pela exclusão acabou por distorcer as provas de aptidão e de inclusão e o resultado disto tudo foi a mercantilização de vagas no ensino superior.

Esta discussão torna-se fundamental no momento em que o Brasil discute um novo modelo de acesso às universidades públicas federais. Pelo novo sistema apresentado pelo Ministério da Educação, o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) tornar-se-ia o novo mecanismo de acesso a universidade em substituição ao tradicional vestibular. O problema central aqui é que novamente um sistema de avaliação, que num primeiro momento deveria servir para garantir a qualidade do ensino médio, será totalmente desfigurado para ter o objetivo do acesso aos grandes centros de excelência do ensino superior.

Portanto, neste debate precisamos de maior atenção, fundamentalmente porque tanto o modelo meritocrático do atual vestibular quanto os objetivos do ENEM precisam ser melhor identificados para que a distorção já provocada pela meritocracia não aprofunde mais ainda a barreira para aqueles que buscam obter o acesso ao ensino superior furando o bloqueio instituído por um mecanismo perverso e subjetivo que é o vestibular.

As avaliações em curso no Brasil - SAEB, ENEM, ENADE - ainda não conseguem considerar as implicações sociais e educacionais do rendimento escolar, pois baseados em aplicação de testes para medição de rendimento escolar, além da classificação e ranqueamento de escolas e universidades, o modelo ainda situa-se nos marcos da meritocracia. Não analisar as condições das escolas, a formação dos professores e todos os mecanismos que compõem a realidade da educação brasileira acaba por deformar o resultado final. Punir com a exclusão da universidade pública aqueles estudantes que, por ausência do próprio Estado, acabam por ter uma formação menos qualificada acaba por resultar numa dupla exclusão, o que torna ainda mais maléfico o modelo de avaliação proposto pelo MEC.

Sendo assim, no atual momento, não nos cabe somente denunciar, mas também propor um modelo mais avançado, que dê a avaliação do ensino médio um caráter de intervenção eficiente para superar os problemas da qualidade e sucesso escolar e também que o mecanismo meritocrático seja substituido por uma avaliação assistida e promotora da igualdade de oportunidade.

Um primeiro passo será a reorganização da avaliação do Ensino Médio. O ENEM deve perder o sentido de ranqueamento, tanto das instituições avaliadas quanto do aluno. Outra questão importante deve ser a inclusão de novos parâmetros na formação dos conceitos de avaliação no exame do ensino médio. A escola já aplica um sistema de avaliação próprio que é preciso ser considerado, porque este não ranqueia os estudantes, mas sim os promove para uma nova etapa da aprendizagem. Portanto, seria fundamental que o ENEM também levasse em conta a avaliação seriada e também incluisse um sistema de auto-avaliação, tanto do aluno, quanto da instituição e dos professores.

Então teríamos a uma média harmônica constituída pela avaliação seriada do aluno, mais a aplicação do ENEM ao final de cada ano letivo, mais a auto-avaliação. Somente depois da reconstituição da avaliação do ensino médio poderíamos pensar os mecanismos de aproveitamento deste para que substitua o vestibular. Não basta dizer que acabamos com o atual sistema de acesso ao ensino superior quando o substituímos por um outro mecanismo semelhante. O fim do vestibular deve estar associado a novos parâmetros de garantia da qualidade do ensino médio e esta é uma responsabilidade do Estado, que deve contar com a colaboração do sistema federal de ensino superior - que precisa estar comprometido com a formação e requalificação de professores, currículos e estruturas escolares. Enquanto isto não ocorrer, não adianta de nada comemorarmos, porque não estamos vendo com a atual proposta do MEC o tão sonhado fim do vestibular.

terça-feira, 21 de abril de 2009

Conferência Nacional de Educação – qual será o centro do debate? (parte 4)

Oficializar, responsabilizando-se e constituindo o novo Sistema Nacional de Educação

Têm chamado a atenção dos leitores deste artigo algumas questões que resumiriam as reais preocupações do autor sobre o tema central em debate na Conferência Nacional de Educação: como constituir um sistema nacional integrado levando em conta os entraves históricos que entrelaçam a educação brasileira? Durante as três primeiras partes deste artigo fiz questão de ressaltar alguns elementos que precisam ser evidenciados, o que requer posicionamentos sobre uma possível continuidade, ou a sua necessária superação ao enfrentarmos os problemas da educação pública.

O primeiro apontamento que fiz chama a atenção para o resgate da autoridade do Estado frente ao compromisso de desenvolver plenamente a educação brasileira. Num segundo momento busquei destacar que a qualidade do ensino brasileiro tem-se constituído em uma preocupação constante, o que envolve não somente o Estado, mas também o conjunto da sociedade organizada que articula-se conforme os seus interesses mais imediatos.

Dentro disto, salta aos olhos a articulação histórica envolvendo os interesses privados em confronto permanente com o campo da defesa da educação pública e progressista, e que a oficialização educacional brasileira tem, sistematicamente, favorecido os interesses privados, principalmente no que diz respeito aos mecanismos legais que constituem o sistema atual de educação brasileira. Comprova-se esta "opção brasileira" nas atuais legislações educacionais, que são fortemente inspiradas nas idéias da pedagogia das competências, do neotecnicismo, neoconservadorismo e da pedagogia corporativa.

Para não ficarmos só na identificação de problemas é preciso superar algumas limitações do campo progressista e retomar com força o debate do caráter público, com referência social para a educação de massa brasileira. Sendo assim, um mito brasileiro precisa ser superado: o da escola como o centro dos problemas da educação do povo. Desde o Brasil colônia a instrução, seja ela feita através da educação jesuíta ou através da ilustração doméstica ou mesmo no modelo educacional do Brasil Império, tem se constituído num processo de oficialização seguido de desresponsabilização. O que seria este processo? No país, muito antes da chegada da Família Real em 1808, mas principalmente depois deste fato histórico, sempre existiu um forte debate sobre a instrução do povo.

O debate educacional não só era algo candente entre a sociedade brasileira, como também haviam diversas e profundas experiências sobre conteúdos a serem ministrados, a organização da escola, a forma curricular, a discussão das modalidades de instrução, etc. O pombalismo, que orientou boa parte do início deste processo, poderia ser definido como um "iluminismo português", e isso nos mostra que Portugal não estava isolada das grandes discussões que permeavam o europa do século XVIII e, portanto, lógico que com a vida da Família Real, grandes discussões também atracaram em terras brasileiras.

Em meio a formação do Brasil Império, houve por aqui uma forte disseminaçãodo objetivo de constituir uma educação para todo o povo, sendo inclusive isto determinado através de aparatos legais que a determinavam a escolarização como de caráter público e de responsabilidade estatal. O Ato Adicional de 1834 já determinava que toda a província deveria oferecer educação primária para todos. Ou seja, desde as primeiras constituições brasileiras, sempre houve um forte debate para a oficialização da educação brasileira, o que nem sempre se constituia em responsabilidade pública perante o problema.
Mesmo permanecendo um modelo de Estado centralizador, a abstenção deste foi uma marca presente no que dizia respeito aos interesses locais e, concomitantemente, aos interesses educacionais. Então o Estado centralizador tratava de oficializar a educação através de leis ao mesmo tempo em que se desresponsabilizava, atribuindo a aplicação destas aos poderes locais. Ou seja, o Estado agia ao mesmo tempo que precarizava. Cada vez mais eram desenvolvidas leis complexas, mas sem um compromisso público para a sua real implementação. Essa é a marca fundadora da educação brasileira - uma dispersão sistêmica oficializada pelo Estado. A esta altura o leitor já deve estar comparando estas questões com a escola brasileira contemporânea. Quantas leis foram desenvolvidas sem a sua plena implementação? Querem exemplos? Constituição Federal de 1988:

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;

II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;

III - pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino;

IV - gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; (grifo do autor)


Quem garante a aplicação integral do que determina a Constituição Federal? Em nosso país a garantia destes direitos tem se dado, salvo exessões, somente através do esforço individual de cada pessoa que ousa buscar o acesso pleno à educação pública. E todos nós sabemos que este esforço individual sempre esbarra nos límites econômicos e de classe que cada indivíduo carrega consigo.

Portanto, assim consigo chegar aquilo que tenho apontado como o tema central da Conferência Nacional de Educação: não nos bastam mais somente legislações e dispositivos legais que determinem as tarefas da sociedade e do Estado frente ao resgate do papel histórico da educação brasileira. É preciso atribuir funções a cada membro da sociedade, e que estes assumam seus compromissos e contribuam para a consolidação de marcos de controle público para a sua real implementação. É aí que surge um debate que precisa estruturar o Sistema Brasileiro de Educação - quais são as modalidades de ensino brasileiras? Quais destas serão obrigação do Estado? Qual é a tarefa central da escola brasileira? O que será realizado por fora da escola e quem assumirá esta responsabilidade? Aqui que se fundamenta a autoridade do Estado para apontar caminhos, sejam eles legais ou pactuados entre a sociedade brasileira que desenharão o novo Sistema Nacional de Educação.

A partir destas perguntas que me debruçarei e tentarei contribuir para o debate de uma nova arquitetura da educação brasileira, o que será tema da continuação deste artigo.

Conferência Nacional de Educação – qual será o centro do debate? (Parte 3)

Reorganização da educação e a redefinição do papel do Estado - "qualidade total" e "escola corporativa"



Analisando as concepções manifestadas pelas grandes empresas e corporações no Brasil, fica evidente que as relações objetivas do setor empresarial junto à educação se baseiam nas premissas da busca de maior produtividade, tendo como instrumento as certificações do tipo ISO 9000, criando assim, mecanismo e padrões que possam atestar tal qualidade. A qualificação profissional surge no cenário do mundo do trabalho e torna-se mais do que mera coadjuvante no processo produtivo. Dentro deste marco é possível perceber o avanço de dois mecanismos estruturantes deste caminho adotado pelo capital: de um lado os mecanismos de aferição e certificação da qualidade total e, de outro, a auto-responsabilização ou o controle sobre os mecanismos que garantam tais objetivos. Para Dermeval Saviani
SAVIANI, Dermeval. Capítulo XVI - O neoprodutivismo e suas variantes: neo-escolanovismo, neoconstrutivismo, neotecnicismo (1991-2001) in: História das Idéias Pedagógicas no Brasil. 2˚ ed revisada e ampliada. Campinas : Autores Associados, 2008.,

"O empenho de introduzir a "pedagogia das competências" nas escolas e nas empresas moveu-se pelo intento de ajustar o perfil dos indivíduos, como trabalhadores e como cidadãos, ao tipo de sociedade decorrente da reorganização do processo produtivo. Por isso, nas empresas busca-se substituir o conceito de qualificação pelo de competências e, nas escolas, procura-se passar do ensino centrado nas disciplinas do conhecimento para o ensino por competências referidas a situações determinadas. Em ambos os casos o objetivo é maximizar a eficiência, isto é, tornar os indivíduos mais produtivos tanto na sua inserção no processo de trabalho como em sua participação na vida da sociedade. E ser produtivo, nesse caso, não quer dizer simplesmente ser capaz de produzir mais em menos tempo. Significa, como assinala Marx, a valorização do capital, isto é, seu crescimento por incorporação de mais-valia." (Saviani, 2008)

Neste sentido, proliferam-se nos meios empresariais e industriais as chamadas escolas corporativas.
Isto tudo não seria nada demais se os interesses do capital estivessem somente focados nos seus próprios mecanismos para a obtenção da qualidade. Mas o que assistimos nas últimas décadas foi uma apropriação do Estado pelos interesses privados, o que passa pela imposição sobre os interesses público.

É ai que mora a crítica à pedagogia das competências, pois ela está diretamente relacionada aos interesses do capital e não aos interesses públicos. O modelo empresarial não limitou-se somente ao ambiente da escola básica, bem pelo contrário, buscou ir muito além. Hoje, as empresas tornam-se agências educativas através de suas fundações e mais do que isto, buscam formar um consórcio nacional com interesses comuns, articuladas ao ponto de influenciarem nas políticas públicas para a educação. Essa é a "pedagogia corporativa" que ja se dissemina também através do ensino superior brasileiro. Durante os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso esse modelo proliferou-se com a oferta indiscriminada das mais variadas modalidades de cursos superiores, quase todos para a formação técnica e de requalificação profissional.

Este foi um caminho que provocou o desmantelamento da universidade do conhecimento, tema que devemos voltar mais para frente. Mas o que fica evidente é que estamos enfrentando neste atual estágio da luta educacional brasileira os interesses privados arreigados no seio do Estado e, portanto, devemos apontar que o nosso principal adversário na preparação do novo PNE será a pedagogia das competências e a pedagogia corporativa, tendo como meta a desencorporação desta concepção da política do Estado brasileiro para a promoção de uma educação para o desenvolvimento nacional.

Portanto cabe aqui uma definição de desenvolvimento nacional que, ao meu ver, é antagônica a concepção de desenvolvimento imprimida pelo setor do capital. Para estes, o desenvolvimento das forças produtivas está associado somente aos objetivos de ampliação do lucro e da produtividade e o consumo. Os objetivos progressistas e sociais vão muito além disto, pois o desenvolvimento tem como pressupostos a vida humana, a qualidade social, a socialização dos bens públicos, e na educação esse enfoque ganha força com o modelo de escola socializadora, democrática e emancipatória. A "guerra" então se dá entre os interesses privados, representados pelos interesses do capital, contraposto pelos interesses públicos, referenciados na luta histórica pela questão nacional.

Se os pressupostos da pedagogia das competências fundamentam a atual LDB e materializou-se nos objetivos e metas do atual Plano Nacional de Educação como afirmamos ateriormente, não há como não enfrentarmos o debate da necessária reformulação das políticas de Estado que norteiam o sistema nacional de ensino. Para tanto, penso que a Conferência Nacional de Educação deverá enfrentar o debate contra a pedagogia das competências, materializada na opinião dos setores do capital e de seus teóricos que encontram-se em posições destadas na academia e nos órgãos públicos e de governo. É preciso diferenciar a educação formal escolar da educação informal ou não-formal, atribuinda a cada qual o seu papel e apontando a responsabilidade do Estado, dando maior atenção ao processo educacional escolar. Se existe uma escola com objetivos corporativos e de referência na qualidade total, então que esta não seja a escola pública brasileira, porque esta precisa estar muito além dos objetivos da pedagogia das competências. E mais do que isto, se existe uma LDB que tem em sua excência a visão neoprodutivista, então que reformemos a atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.

Conferência Nacional de Educação – qual será o centro do debate? (Parte 2)

Para além do corporativismo de classe e o neoprodutivismo e a sua necessária superação


Nas últimas décadas brasileiras a contradição emergente se dá nas relações entre um acelerado crescimento urbano provocado pela industrialização que acabam por operar em pressões sociais nas mais diversas esferas públicas, dentre estas, na necessidade de expansão da escolarização. Para isto, um sistema de ensino conservador e arcaico como o modelo brasileiro de escola torna-se um impedimento ao sistema econômico, o que por si só já é suficiente para que ocorram manifestações em diversas esferas para que a educação assuma papel na superação dos entraves para o desenvolvimento.

Para tanto, é fundamental para um país que queira superar os obstáculos para o seu desenvolvimento que o sistema educacional se renove. Mas é fundamental também compreender que esse fenômeno se debate sistematicamente com uma estrutura de Estado que apresenta um forte grau de desequilíbrio histórico, o que estabelece contradições tamanhas que vão permear fortemente a disputa de projeto nacional, onde a educação passa a ser uma pauta de forte apelo.

Exemplo recente disto tem sido tanto os esforços dos setores progressistas e dos movimentos educacionais pela democratização da educação pública e a sua relevância política e cultural que são acompanhados de perto por movimentos empresariais expressos no último período pelo movimento “Todos pela educação” que se afirma em seu próprio programa como “um movimento que tem como objetivo contribuir para que o País consiga garantir Educação de qualidade para todos os brasileiros.” É interessante destacar que os signatários deste movimento são nada menos que o Banco Real, a Depaschoal, a Fundação Bradesco, a Fundação Itaú, a Gerdau, o Instituto Camargo Corrêa, a Odebrecht, a Suzano, etc.

Antes de explicitar os principais objetivos dos movimentos históricos de defesa da educação, cabe aqui dedicar atenção aos reais objetivos do chamado setor privado no desenvolvimento da educação brasileira.


A educação escolar e as demandas do desenvolvimento

Segundo Romanelli

ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da Educação no Brasil. 33ª ed. Vozes : Petrópolis,RJ, 2008. (2008, p. 25), “a herança cultural, influindo diretamente sobre a composição e os objetivos perseguidos pela demanda escolar, os rumos que toma a economia, criando novas necessidades de qualificação profissional, e a expansão da educação escolarizada, obedecendo à pressão desses dois fatores, compõem o quadro situacional das relações existentes entre educação e desenvolvimento.” Eis que surge no Brasil uma demanda que unifica todos os setores – uma educação para o desenvolvimento.

Neste sentido que ganhou força a concepção neoprodutivista que teve seu inicio no produtivismo e no tecnicismo educacional que permeou as reformas durante o período da ditadura militar e que foi refuncionalizada durante os governo de Fernando Henrique Cardoso. Tendo como ênfase a qualidade social da educação, o neoprodutivismo alcançou sua nova roupagem no projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), no projeto de Darcy Ribeiro, e que teve continuidade com a regulamentação de seus dispositivos na aprovação do atual Plano Nacional de Educação (PNE).

Ou seja, a educação deixa de ser uma demanda histórica da nação para assumir interesses privados, que esbarram somente na capacidade de produção do país. Eis um debate que permeará com força a Conferência Nacional de Educação, pois o segmento empresarial encontra-se altamente articulado com o Estado, com os meios de comunicação e influenciam decisivamente na formação da opinião pública. É preciso então restabelecer um campo contra hegemônico que enfrente este debate sem desmerecer os elementos constitutivos do projeto neoprodutivista, mas que chame a atenção para que a educação assuma tarefa muito maior do que somente a formação de mão de obra qualificada, ou seja, para que a educação brasileira ajude a desenhar um novo estado independente e desenvolvido e que faça frente a atual crise sistêmica do atual modelo de desenvolvimento.

A educação se insere nos marcos da capacidade de um determinado país em apresentar saídas para os entraves ao seu desenvolvimento e, para tanto, cabe ressaltar que a disputa da autoridade pública frente ao problema da escolarização brasileira precisa apresentar um projeto que supere o produtivismo e que afirme parâmetros claros a serem defendidos no novo Plano Nacional de Educação, o que passa a ser a tarefa central na Conae.

Conferência Nacional de Educação – qual será o centro do debate?

“Qualquer pessoa que se recuse a assumir
a responsabilidade coletiva pelo mundo não deveria ter crianças,
e é preciso proibi-la de tomar parte em sua educação.” (Hannad Arendt)

Hannad Arendt, filosofa alemã, em seu artigo “A crise da educação”, afirmava que ter responsabilidade pelo mundo assume, na contemporaneidade, a forma de autoridade, fato este que deve ser reconhecido para muito além da qualificação ou da capacitação. Talvez esta seja uma das explicações para o atual estado da educação pública brasileira – ausência de autoridade legítima ou total falência da responsabilidade coletiva sobre o ato de educar as novas gerações. E é interessante relacionar este pensamento ao fato histórico da convocação da Conferência Nacional de Educação – Conae, que tem como tarefa central a construção do sistema nacional integrado, além de debater o novo Plano Nacional de Educação – PNE.

O objetivo proposto pela Conae não é nenhuma novidade, pois esta tem sido a pauta principal do movimento progressista em educação no Brasil. É possível identificar na história ressente da República a legitimação de interesses privados em detrimento do bem público, e lógico, que a educação pública também esteve permeada por este enfoque.

Há no sistema educacional brasileiro uma forte contradição. A escola de massas que se consolidou nas últimas décadas permanece distante da formação necessária que o próprio sistema capitalista coloca como condição essencial à formação do homem ativo, produtivo e integrado. Neste sentido, nos ofereceram duas alternativas para elegermos um culpado para o fracasso da educação brasileira. O primeiro trata de responsabilizar a escola, pois diz-se que esta encontra-se despreparada para educar, instruir e profissionalizar. De outro lado, a própria escola trata de culpar a sociedade por esta ter se desresponsabilizado pela educação de seus filhos, ou ainda, de forma mais imediatista, trata de eleger o aluno como desinteressado, incapaz e problemático.

Em meio a tudo isso a questão da autoridade surge como um alerta social capaz de enfrentar esta falsa contradição. A escola tem sido o primeiro canal de relação da criança com o mundo. No entanto, a escola não é, de modo algum, o mundo e jamais deverá sê-lo. Assumir autoridade é um primeiro passo para esse resgate. Como dizia Arendt, “quanto mais radical se torna a desconfiança face à autoridade na esfera pública, mais aumenta, naturalmente, a probabilidade de que a esfera privada não permaneça incólume.” Portanto, é preciso resgatar a autoridade pública frente aos desafios de educar uma nação. Não nos será permitido relegar somente à escola o papel de educar nossos filhos. Para tanto, o Estado (não o governo) deve assumir para si o resgate da autoridade e, assim, ser capaz de responsabilizar também a sociedade para tal.

É nisto que se fundamenta a necessária ação articulada do campo progressista na Conferência Nacional de Educação. Precisamos restabelecer os atores e apontar os papéis corretos para que a educação pública assuma a sua real tarefa, pois é nela que reside “o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele”. (Arendt)

Responsabilizar-se é, neste sentido, delegarmos com clareza o papel do Estado, da sociedade e da escola frente à educação e aprendizagem. E isso não será feito se o palco propício para isto se tornar objeto de disputas corporativas incapazes de identificar o centro do embate: a ampliação da educação e a sua tarefa pública frente aos interesses privados e fragmentados que permeiam esta discussão, resgatando o citivas mundi, onde a educação assuma a formação do sujeito “mundanizado”, ativo, liberado de vínculos e ordens e crítico frente aos desafios de seu tempo.

Iniciar...

Pode ser pretencioso, mas preciso expressar o que penso sobre o que aprendo, sobre o que discuto, sobre o quero ver materializar-se...
Em 2009 mergulhamos na Conferência Nacional de Educação e espero a partir deste blog poder contribuir com temas que penso serem fundamentais para o nosso país.

Me ajudem nessa cominhada.

Márcio